Epílogo
A casa cor de rosa, com luzes que volteiam suas curvas antigas, dá uma sensação de feminino sagrado, de respeito pelo ventre, pelo seio.
Construída no alto da cidade, acompanhada pela sacralidade da Catedral Metropolitana que lhe faz companhia desde sempre; protegida pelos belos seguranças de olhos verdes, e ternos pretos impecáveis, com braços longos e olhar atento que permanecem postados- quase estátuas- na casa da frente; está iluminada para lembrar que as fêmeas não devem morrer de câncer de mama. Saiu nos jornais, na televisão: o palácio do governo está iluminado de cor de rosa para reverenciar as mulheres e sua saúde feminina. Acreditamos que esta casa, que nunca fora comandada por uma mulher, estaria hoje atenta às causas femininas e suas circunstâncias. Não demorou muito para descobrirmos que desta mesma casa uma senhora, sua ilustre comandante, estaria autorizando a que seus homens fortes, de pesados uniformes verdes, usando capacetes resistentes, protegidos por escudos anti-bala e portando armas de todos os tipos, atirassem contras as mulheres trabalhadoras, lhes arrancassem pedaços de pele, expusessem seus ossos, e lhes humilhassem em público. Senhoras trabalhadoras, professoras, bancárias desarmadas ou senhoras sem emprego, sem teto, sem terra e sem armas.
A primeira mulher a comandar um estado, por natureza considerado machista, berço de grandes homens, nos desonra mandando seus homens espancarem nossas mulheres e desrespeitarem o que há de mais sagrado numa democracia: os direitos individuais dos cidadãos. Esta primeira mulher que permitiu que uma bancária, dirigente sindical abrigada pela sombrinha da lei, fosse algemada em plena praça, em frente aos seus colegas, e levada até o batalhão de homens para lá permanecer presa por duas horas apenas por estar aquela moça reivindicando o que lhe é justo por lei e negado pelos homens.
A casa deveria estar de luto nestes últimos dias. È vergonhoso descer a rua da ladeira, e encontrar na sede do Sindicato dos bancários os jornais que mostram a truculência da governadora: uma mulher que mandou seus homens espancarem as mulheres desarmadas!
E há uma trilha às vezes imaginária, às vezes real que desce da casa de Deus pela rua da ladeira e vai até as águas que foram límpidas do Rio Guaíba, passando pelas calçadas da Rua da Praia, e volteando a Praça da Alfândega. Por aqui morreram homens, suicidaram-se bancários, tirotearam soldados jovens e inocentes cidadãos. Dançaram senhoritas no Clube do Comércio, e hoje cheiram cola e roubam bolsas os excluídos do capital. É neste cenário que mulheres bancárias inteligentes, que estudaram que passaram nos concursos públicos continuam a ser açoitadas por homens armados do governo. Há as Anas, as Natalinas que levam porretadas dos homens do estado. Estas mulheres bancárias que com sua inteligência intuição e coragem sustentam famílias, amamentam seus filhos, atendem clientes do banco. Há ainda a Maria Fernanda que preside a Caixa Federal, com sabedoria e visão de futuro, há a Sylvia que desbravou o universo masculino do Banrisul tornando-se uma funcionária como aqueles de calças compridas e bigodes esparramados; há Anas Helenas, Valerias, Rosas e Eloás que escrevem livros, as Marias ou Terezas que vendem flores e incensos enquanto as Espíndolas e Carmens vendem seus livros sob as barracas de lona da Feira do Livro. Há as que lêem os livros, as que passeiam entre o povo que se desloca numa quinzena de primavera e formam fileiras serpenteando as tendas cheias de folhas escritas que hoje adornam aquele cenário outrora ensurdecido pelas balas dos Farroupilhas, e, que há pouco se envergonhava das algemas colocadas nos pulsos finos da dirigente sindical. A Praça da Alfândega continua sendo o cenário das vitórias e dos leitores, e acolhe aos que descem a romântica ladeira depois de terem passado em frente à casa amarela, iluminada pelas mentes sábias dos homens e mulheres que criaram um sindicato para lutar pelos direitos surrupiados pelos donos do dinheiro e do poder.
O caminho da casa da Deus até a margem do rio descansa na sombra dos jacarandás que ora floridos, ora pingado o orvalho que a noite lhes emprestou, adormece nas varandas rosadas da casa de cultura do velho Mário Quintana. Passa apressado pela casa antiga do correio do povo, já foi até a margem do rio molhar os pés na água límpida do rio e sujar as mãos na areia branca que o homem escondeu sob as pedras e o cimento. Este caminho que foi testemunho da luta de um povo por liberdade e justiça continua entremeando a força, a injustiça e a sabedoria dos literatos. Estes, iluminam as tardes com seus olhares de encanto sobre as milhares de páginas que se lhe oferecem sobre estantes rodeadas de moças e velhinhas.
Nem tudo é injustiça neste caminho cheio de glorias e lágrimas, onde um passado marcado por crueldade e um presente que ainda constrange aos de bem, se misturam e recebem, para regozijo da cultura gaúcha, o homem franzino, de olhos azuis, e sorriso tímido, com sua sabedoria magistral, para tornar-se o timoneiro da embarcação 54ª Feira do Livro de Porto Alegre. Charles Kiefer, um gaúcho daqueles que honram as tradições desta terra, será o Sepé Tiaraju na primeira quinzena de novembro e, do póduim imaginário da praça, dirá aos soldados da brigada que batem em mulheres, à mulher que ordenou esta vergonha, aos banqueiros que surrupiam a saúde dos bancários e o dinheiro do povo, aos estrangeiros que queimam nossas florestas e sugam nossos mananciais, que ESTA TERRA TEM DONO!
O velho Mário há de sorrir no encantamento de quem está imune a tudo isso, mas que já sentou nesta praça ao lado do amigo Erico e do Josué, e piscou para as moças que desfilaram faceiras na frente da confeitaria Matheus. Ainda confessou num daqueles instantes de paixão:
“Olho O Mapa o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...
(E nem que fosse o meu corpo!)
Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...
Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E ha uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)
Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)
E talvez de meu repouso...
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...
(E nem que fosse o meu corpo!)
Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...
Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E ha uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)
Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)
E talvez de meu repouso...
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